Rostos de folhas

Publicado: 11 de abril de 2011 em Arte, Literatura, Situações Curitibana's
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Da série “Situações Curitibana’s”


Já pegou um livro antigo e meditou sobre a mensagem por trás das dedicatórias? Leia esse texto e comece a prestar atenção. Vai ver que essa é uma atividade capaz de viciar.

Elen Canto

Sebos não são os lugares mais badalados do mundo – em Curitiba, existe o agravante de todo bom curitibano ter rinite e fazer questão de falar “renite” – mas são o refúgio de um público apaixonadíssimo. Encontrei um desses refúgios na Rua 13 de Maio. A esquina com a Mateus Leme é quase um clichê de nostalgia: paralelepípedos que dão em um antiquário contíguo a um sebo, o Arcádia. A livraria, fundada em 1997, fica em um casarão antigo em que uma velha senhora polaca chamada Curitiba poderia morar.

Pedi um cafezinho e abri meus ouvidos para o que a anfitriã imaginária poderia me contar. Procurei páginas que dessem uma pista de gente que passou por ali. Fugi de Daltons e Leminskis, porque não estava interessada nos curitibanos das capas, tampouco da Curitiba retratada nas histórias. Busquei as histórias que estão nas folhas de rosto: as dedicatórias e anotações dos antigos donos dos livros. Na falta das histórias verdadeiras, é muito divertido criar personagens a partir das impressões deixadas. Foi o que fiz.

Uma das dedicatórias mais impressionantes que encontrei não tinha palavras. É um exemplar de Lolita, de Nabokov, e veio com uma marca de batom na folha de rosto. A partir dessa intervenção curiosa surgem muitas imagens, mas a minha preferida é a de uma mulher com mais de 30 anos, solteira, que não podia ser considerada uma jovem sensual.

Ela lê o livro, redescobre em si uma mocinha safada e deseja manifestar sua lascívia. Assim, ela pega o batom mais escuro que tem e deixa a marca de sua sensualidade no livro. Ela dedica aquela história a si mesma. Até que chegou um dia em que a situação financeira apertou e ela decidiu vender umas roupas no brechó e os livros no sebo.

Dois livros que pertenceram à mesma pessoa dão pistas para uma história que poderia ter acontecido. Um casal de Irati, Eduardo e Wanda, almoçava junto quando ela começou a reclamar que não recebia mais atenção do marido. “Quer romance? Eu compro um livro para você”, ele disse. No caminho passam em uma banca e ela escolhe o presente. “Escreva pelo menos uma dedicatória”, ela pede. “Já te dei um presente. É o máximo que posso fazer”.

Wanda anota na folha de rosto que o livro era uma lembrança de seu amor. Coloca nome por extenso (Wanda era só apelido), data e hora. Ela tinha mania de anotar a hora em que comprou ou ganhou um livro. Foi uma questão de tempo e o casamento acabou. Wanda passa a usar apenas a forma abreviada do nome, porque era uma nova mulher. Mudou-se para Curitiba e vendeu sua vida antiga para um sebo.

“Ao amiguinho Guilherme Wolf Schaia offereço, com sincera amizade, esta pequena recordação. Anna Bruck. Curityba, 8 de maio de 1939”.

Quando ainda era adolescente, aos 17 anos, o saudoso maestro curitibano recebe o presente de uma amiga mais velha. Wolf Schaia fundou o Grupo de Operetas do Paraná, compôs mais de 600 obras, cantava e também ensinava. Morreu em 2002, aos 80 anos, mas uma página ainda guarda a lembrança de uma amizade dos tempos de adolescente.

Embora não seja regra, por mais que uma dedicatória seja romântica, os sebos dão a impressão de que aquela história teve um fim triste: problemas pessoais, término de relacionamento, morte. Mas os livros guardam sempre esse momento feliz em que alguém decide presentear alguém ou que uma pessoa se identifica ou quando se decide registrar o momento em que o livro foi adquirido.

Felizmente, este refúgio curitibano de que falei preserva essas memórias. Em outro sebo, uma das vendedoras me contou que as páginas de dedicatórias eram arrancadas porque isso desvalorizava o livro. Parece um pouco contraditório imaginar que a experiência de outro ser humano pode diminuir o valor de um objeto que serve justamente para contar histórias.

comentários
  1. Elen Canto disse:

    Esse negócio de procurar dedicatórias vicia mesmo. Fiquei bem honrada com a republicação. Sempre às ordens!
    Grande beijo

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